Lesbian Nuns: breaking silence (Edição Warner Books). 1985.

“Lesbian Nuns”, sobre buscas e paradoxos

Anna Beatriz Rodrigues
6 min readJul 28, 2024

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“Eu escrevo minha história não porque acho que ela seja especial, mas porque sei que ela não é especial.” — Elizabeth V. Durant

A vida é paradoxal demais. Enquanto entidades vivas e inundadas de sentimentos, somos complexos demais para não ser paradoxais. O cerne do que somos sempre vai buscar o que anseia, mesmo que tenha que nos levar pelo fluxo derivante do inconsciente.

Nos últimos dias li o livro “Lesbian nuns: breaking silence”, das autoras Rosemary Curb e Nancy Manahan, publicado originalmente em 1985. O livro é composto por 50 ensaios extremamente pessoais de diferentes autoras que foram ou ainda permaneciam sendo — na data de publicação do livro — freiras, contando sua experiência no convento e a relação desta com suas identidades enquanto mulheres e lésbicas. Quero aqui comentar algumas reflexões que tive, e estimular uma meditação para além do que chega aos olhos e à superfície da racionalidade.

O mais fascinante para mim neste livro foi escutar as histórias dessas mulheres relatando como encontraram nos conventos um certo refúgio e senso de comunidade, por mais contrassenso que isso soasse aos meus ouvidos. Parece uma incoerência pensar que esse exato lugar, parte de toda estrutura patriarcal cristã que oprime mulheres, e especialmente mulheres como nós, poderia, de certa forma, ser um abrigo para mulheres que ansiavam fugir de um mundo centrado no masculino. Mas exatamente isso nos mostra essa cativante bibliografia. Nas palavras de Kevyn Lutton: “Para mim, tinha algo muito sedutor sobre a vida contemplativa. Significava total desprendimento de ter que me identificar com o mundo.” Mais a frente, quando perguntada se ela conseguia enxergar paralelos entre as expectativas de se tornar uma freira e a sua lesbianidade, Kevyn prontamente traça algumas das similaridades entre a vida no convento e os grupos feministas dos quais passou a fazer parte após deixar o convento: a maneira como trabalhavam juntas, se comunicavam, construíam objetivos e meios para atingí-los, e a maneira como cuidavam umas das outras. “Havia a expectativa de ser capaz de viver e trabalhar fora do privilégio e dominação masculina. O convento apresentava essa ilusão […]” e ilusão aqui é uma palavra-chave, pois Kevyn não deixa de frisar: “mas nossa falta de poder na Igreja patriarcal era jogado em nossa cara diariamente.” A incessante poda repressiva e injeção de todo tipo de culpa é, infelizmente, inevitável de estar presente em um lugar como um convento. “Se minha história parece fofa ou travessa, eu quero que aqueles que a lerem, católicos e não-católicos, freiras ou padres, de fora ou de dentro, hoje e no último ano, saibam que ser uma freira, especialmente uma lésbica latente, não é engraçado. Nós precisamos educar nossas jovens, no ensino médio, faculdade, ou no convento, para que a celebração de ser gay não seja destruída por qualquer autoridade hipócrita.”, alerta Jeanne Cordova, que também deixou o convento para se juntar à grupos feministas, como o famoso “The Daughters of Bilitis”.

Essa dualidade de sentimentos paradoxais mas coexistentes está presente nos relatos de todas as mulheres. Jean O’Leary relata suas reflexões pouco antes de deixar o convento: “Eu estava preparada para ir embora. Conscientemente eu queria participar no mundo; subconscientemente eu estava preparada para aceitar minha lesbianidade. O convento me deu um abrigo e ambiente protegido para explorar meus sentimentos por mulheres. Mesmo seu negacionismo e restrições não puderam suprimir meus instintos. Martha [uma das companheiras de convento de Jean, líder entre as freiras postulantes] diz que eu mudei o ambiente para se encaixar em minhas próprias necessidades, mas todas as mulheres que amei ali deixaram uma marca profunda em mim. Nós moldamos as vidas umas das outras. […] A única culpa que eu senti nunca foi por amar mulheres, mas por cooperar na hipocrisia da negação. […] O convento se parece com o céu, um mundo separado das pressões e riscos do mundo real. Mas esse abrigo cobra um preço de auto-negação que eu não estava disposta a pagar. Eu queria mudar esse mundo, não me remover dele”. É muito visível esse padrão tanto nas motivações que fizeram as mulheres adentrarem o convento — um desejo de escapar de um mundo centrado no masculino—, quanto as motivações que as fizeram deixar o convento — uma sede de participar de um novo mundo. Não segregado, mas inclusivo. Porque o isolamento é uma faca de dois gumes, que também pode gerar um sentimento de perda, de um buraco na linha do tempo da existência. “Por vezes eu me arrependo do tempo que perdi no convento. Eu fui separada da minha mulheridade nos longos anos dentro do cristianismo. Eu estava vivendo sob uma lógica estranha ao meu ritmo interno.”, diz Mab Maher

Mas, mais inevitável que a repressão, é a formação dos laços tão profundos entre essas mulheres, alicerçados em uma admiração mútua e cuidado, que nasce entre mulheres que amam mulheres em todos os sentidos. Foi preciso o uso de muita força, como a enfática proibição das chamadas “amizades particulares”, para tentar conter a formação desses laços, mas nem toda força bruta do mundo consegue impedir o que é tão natural quanto o fluxo dos ventos: o afeto.

“Eu a amava. Eu não queria que ela sentisse medo. Eu não queria a perder. Nós conversamos por muito tempo sobre amor, sobre amizade, sobre compartilhar. Carrie era honesta consigo mesma e comigo. Ela reconheceu a intensidade de nossos sentimentos. Ela não tinha medo de explorar o significado de nossos sentimentos verbalmente ou intelectualmente. Ela era inocente em relação ao preconceito contra o amor. Naquele dia apenas conversamos, buscando iluminação. Era inevitável que nos amaríamos, era inevitável que faríamos amor.” (trecho de relato de Jean O’Leary).

A preocupação com as chamadas “amizades particulares” é quase unânime em todos os relatos, a ponto de se tornar praticamente um dogma nos conventos. Mesmo estando presentes uma variedade de denominações, todas são enfáticas em proibir as “amizades particulares”. Mas se algo exige tanta força para ser contido, é um sinal forte de que talvez essa repressão que seja o anti-natural, e não o sentimento que vem com tanta naturalidade e exige tanta violência para ser suprimido. Ayyelet Hashachar relata: “O mesmo arranjo que poderia ter fomentado mulheres amando mulheres proibia sua força de união mais forte. […] A homofobia operava no convento com ainda mais força que na sociedade geral. […] Nós recebíamos sermões sobre os perigos de ‘amizades particulares’. Ninguém usava a palavra ‘lésbica’. A proibição de amizades próximas entre duas mulheres era baseada na ideologia de vida comunitária: se você restringisse seu tempo e atenção demasiadamente à uma pessoa, isso limitaria sua disponibilidade para a comunidade como um todo.”

Mas essas mulheres floresceram apesar de tudo, emergiram para si apesar da contra-corrente. O livro comenta como tantas dessas mulheres, em massa, deixaram o convento para se unirem à movimentos sociais de direitos das mulheres e homossexuais. Como se flores crescendo em cimento finalmente fossem transplantadas em um jardim. Como bem relata Jeanne Cordova: “Os movimentos de justiça social nos anos 70 e 80 estavam repletos de lideranças lésbicas que eram ex-freiras. Eu passei a ver o convento como um ‘campo de treinamento’ para todas nós, nossa alma mater.”

Apesar dos muitos relatos de dores, algumas mulheres encontraram um equilíbrio entre sua sexualidade e espiritualidade, e algumas ainda permaneceram em seus votos mesmo após entrarem em paz com a própria sexualidade. A irmã Pat O’Donnell relata: “Eu não posso mais separar minha espiritualidade da minha sexualidade. Eu não posso confiar em Deus enquanto estou aterrorizada comigo mesma. Deus me chamou para ser quem sou: uma irmã lésbica.” Segundo irmã Pat, negar sua lesbianidade seria viver com medo “de minha própria face e voz, do buraco espiralado do meu inconsciente, e do oceano do meu ser.” Eu acredito que, para o bem ou para o mal, comunidades religiosas sempre vão ter muita força em um mundo capitalista e individualista, porque esse individualismo é totalmente contrário à natureza humana que vai sempre ansiar por comunidade. Essa fuga do capitalismo, pai do patriarcado, também é muito presente nos relatos: “Estamos contentes em contemplar o inexplicável e não desejamos poder sobre pessoas ou objetos. […] Muitas pessoas, incluindo feministas, nos vê como alguém que está diminuindo seu valor porque elas continuam na tradição masculina de equalizar trabalho com o valor de uma etiqueta de preço. Nós rejeitamos essa tradição”, diz Violet.

Eu disse no início desse texto que o cerne do que somos sempre vai buscar o que anseia, porque essa foi a impressão que fiquei ao fim dessa leitura. Essas mulheres foram levadas ao convento por uma ânsia interior que não sabiam nomear, e ao chegar lá elaboraram seu turbilhão interior porque encontraram outras mulheres que foram guiadas pela mesma força invisível e imparável. Uma força muito mais forte que um chamado divino.

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Anna Beatriz Rodrigues

Fascinada pela vida, o vivo e o viver desde que percebeu existir, se tornou bióloga. Descobriu que o fascínio era paixão, se tornou poeta. (ig: @anna.rodds)