Daisies in green vase - Kevin Fetzer. Pinterest.

Clara devia ter exigido motivos.

Anna Beatriz Rodrigues
3 min readJul 20, 2024

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No meio do jantar Clara olhava fixamente para o vaso verde que havia comprado recentemente, preenchido com as margaridas frescas que havia recebido da floricultura pela manhã. Clara amava verde, sempre foi sua cor favorita. Quando ela falava isso as pessoas questionavam, por que Clara nunca vestia verde. Mas as pessoas não entendiam. Clara não gostava de vestir verde, não achava bonito nela. Achava o verde em si bonito, a lembrava de coisas que ela ama e admira, como o lugar tão verde de onde veio estas lindas margaridas. E não é sobre isso o amor? Apreciar algo alheio a si, que não é sobre você?

Clara se apaixonou pelo seu marido Ricardo desse jeito. A duas décadas atrás. Clara se apaixonou. Não pelo que podia receber dele, mas pelo que ele era. Divertido, extrovertido, conversador. Clara gostava de vê-lo existir. E isso era motivo suficiente para amá-lo. Amá-lo como ama o verde, como ama essas margaridas à sua frente. E ela tinha dito isso para ele, mais de uma vez, ao longo dessas décadas.

Mas agora, juntando as sobrancelhas enquanto observava o vaso e a voz de seu marido em um eco distorcido no fundo, Clara pensava: ele disse que a amava, inúmeras vezes, mas nunca disse o por quê. “Eu deveria ter exigido motivos”, ponderou Clara. Quando lhe perguntava por que a amava, o marido apenas sorria e dizia que não sabia responder, apenas amava. Segundo ele amar era isso. Amar sem motivos. E agora Clara sentia que isso era uma loucura. Se me amava sem motivos, com a mesma facilidade deixaria de me amar, também sem precisar de motivos. Pensava Clara.

“Deputado do MCB enfrenta represália popular e poderá ser destituído do cargo por usar de recursos Estatais para tentar esconder envolvimento com prostituta.” Havia dito o repórter na televisão a poucos minutos atrás. E agora o marido seguia em um sermão sobre o fulano nunca ter deixado de cumprir seus papéis de homem com a família. “Todos sempre estiveram bem alimentados e vestidos.” Dizia. Seu marido era amigo do deputado em questão. Se conheceram nos tempos de universidade.

E agora, depois de suas ponderações, ao levantar os olhos e novamente fixá-los nos olhos do marido que falava, Clara sentia pela primeira vez- Não, não sentia pela primeira vez. Mas era a primeira vez que ela conseguia agarrar o sentimento e fazer sentido dele. Clara sentia a tristeza que rasga profundo no momento de estranhamento quando homens que amamos falam algo que nos lembra do antagonismo. E o sujeito de seu afeto deixa o brutal sair de sua boca tão naturalmente. Ela lembrou que Ricardo era homem. Será que ele havia esquecido que ela é mulher?

“Papel de homem?” “Papel de mulher?” “Deslize de homem?” “Compreensão da mulher?”

Homem e mulher. O antagônico. Contraste. Muro.

E quanto a se amar como pessoas? Se ele tinha essa opinião sobre o caso, certamente via sua relação da mesma forma. Clara olhava fixamente para Ricardo. Olhos inquietos passeando por todo rosto da pessoa a sua frente, buscando algo.

Clara amava sem esperar nada em em troca. Amava vê-lo existir. Mas então como agora ele resumia o amor dele para ela a trazer dinheiro para a mesa? O que era o amor para ele? “Se eu e essa pobre mulher traída devemos fidelidade emocional e corporal a eles mas eles devem em retorno provisão, isso quer dizer que eles são para nós gente e nós somos para eles posse. Uma coisa a ser mantida.” Pensou Clara.

A percepção veio em Clara, como um soco: sou olhada como esposa, mas não vista como pessoa. Ali, olhando nos olhos de Ricardo enquanto ele fazia tais constatações, com uma naturalidade apavorante, Clara sentiu o coração pesar.

E de repente Clara não conseguia deixar de pensar, se destituídos fossem dos laços pré-estabelecidos que construíram seu afeto. Se fossem apenas gente. Um de frente para o outro. Estranhos. Eu o veria como pessoa. Ele me veria como o que? Ele me viu como o que a 20 anos atrás? Se não houve motivos… Ele me viu como o que? Porque está aqui? Porque esteve aqui nestes 20 anos?

Clara deveria ter exigido motivos.

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Anna Beatriz Rodrigues

Fascinada pela vida, o vivo e o viver desde que percebeu existir, se tornou bióloga. Descobriu que o fascínio era paixão, se tornou poeta. (ig: @anna.rodds)