“We write to taste life twice, in the moment and in retrospect.” — Anaïs Nin (1903–1977)

Breu

Anna Beatriz Rodrigues
2 min readOct 5, 2024

I.
Eu gosto de escrever sem dizer muito,
porque me fascina ser um subtexto.

Aprecio a ideia de ser espelho rachado
e refletir mil e duas versões.

Faça das minhas palavras argila
e molde o que quiser.

No fim serei vaso,
acolhendo as flores do que se é.

II.
Conversa com o corpo
incapaz de mentir o que sente.


ábdito de tudo,
na beira do Território.

Boca cínica
pousada no pescoço,
pulsa o descontrole
paradoxalmente contido na veia.

Pés que pisam em ovos,
o peso do corpo sofreado na mente.
Não posso deixar rastros de que estive em você.

III.
Me empurra ao poço do inefável
porque difícil é
dissolver em tua garganta
que não sou apenas fantasia.

É bom me pintar em tela negra,
no breu onde tudo é permitido.

Onde não ameaço suas estruturas,
que te protegem e te amarram
na mesma maldição contratual.

Mas quando,
sob a impassível luz do sol,
olha com terror
os mesmos olhos
que no breu olha com lascívia,
o medo
que não é seu
lhe rouba tudo.

IV.
Ensaio
centenas de vezes,
diário
chuveiro
espelho,
como, quando e onde
falar.

Coração [o cerne de si] dita cada palavra,
que o palmo estremece a tomar nota.
A alma ávida pela lhaneza
deságua cada sílaba
entregue à língua mensageira,
para guardar e soltar em oportuno momento.

Mas nenhuma parte do íntimo esperava
um toque tão frio,
um olhar tão distante,
e asserções tão terebrantes.

A vulnerabilidade se recolheu em milésimos,
quando as pontas dos dedos tocaram rios tão gélidos.

A garganta seca não teve palavras,
tão desorientada que nem chorei.
Nem ali, nem agora.

Esse é o tipo de lesão que fica,
não escoa nem em pranto.

V.
Não sei se você carrega algo,
mas se carrega,
me faço boba outra vez.
e te consolo enquanto verto:

Eu também.

Apesar de estar longe de ser uma,
me concedo a consolação das santas
que dão a outra face.

E transformo minha mágoa em sermão:
Para a dor e a paixão [sinonímia] não há preparo,
é salto e queda livre sem amparo.

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Anna Beatriz Rodrigues

Fascinada pela vida, o vivo e o viver desde que percebeu existir, se tornou bióloga. Descobriu que o fascínio era paixão, se tornou poeta. (ig: @anna.rodds)