Breu
I.
Eu gosto de escrever sem dizer muito,
porque me fascina ser um subtexto.
Aprecio a ideia de ser espelho rachado
e refletir mil e duas versões.
Faça das minhas palavras argila
e molde o que quiser.
No fim serei vaso,
acolhendo as flores do que se é.
II.
Conversa com o corpo
incapaz de mentir o que sente.
Lá
ábdito de tudo,
na beira do Território.
Boca cínica
pousada no pescoço,
pulsa o descontrole
paradoxalmente contido na veia.
Pés que pisam em ovos,
o peso do corpo sofreado na mente.
Não posso deixar rastros de que estive em você.
III.
Me empurra ao poço do inefável
porque difícil é
dissolver em tua garganta
que não sou apenas fantasia.
É bom me pintar em tela negra,
no breu onde tudo é permitido.
Onde não ameaço suas estruturas,
que te protegem e te amarram
na mesma maldição contratual.
Mas quando,
sob a impassível luz do sol,
olha com terror
os mesmos olhos
que no breu olha com lascívia,
o medo
que não é seu
lhe rouba tudo.
IV.
Ensaio
centenas de vezes,
diário
chuveiro
espelho,
como, quando e onde
falar.
Coração [o cerne de si] dita cada palavra,
que o palmo estremece a tomar nota.
A alma ávida pela lhaneza
deságua cada sílaba
entregue à língua mensageira,
para guardar e soltar em oportuno momento.
Mas nenhuma parte do íntimo esperava
um toque tão frio,
um olhar tão distante,
e asserções tão terebrantes.
A vulnerabilidade se recolheu em milésimos,
quando as pontas dos dedos tocaram rios tão gélidos.
A garganta seca não teve palavras,
tão desorientada que nem chorei.
Nem ali, nem agora.
Esse é o tipo de lesão que fica,
não escoa nem em pranto.
V.
Não sei se você carrega algo,
mas se carrega,
me faço boba outra vez.
e te consolo enquanto verto:
Eu também.
Apesar de estar longe de ser uma,
me concedo a consolação das santas
que dão a outra face.
E transformo minha mágoa em sermão:
Para a dor e a paixão [sinonímia] não há preparo,
é salto e queda livre sem amparo.